Esse relato foi feito num dia que presenciei o festival da
identidade capixaba, que trouxe até a capital do Espírito Santo 150 grupos de
cultura tradicional do estado, de todas as matrizes e sincretismos e hibridismos
culturais possíveis da variada sociedade colonial brasileira. A paz vivida
nesse dia de convivência de tão distintos grupos étnicos e culturais foi um dos
momentos onde a democracia racial existe, ainda que numa fugaz bolha com prazo
de vida limitado. Que estoura quando se volta ao cotidiano de injustiças de
alguns e prosperidade de outros, quando volta a uma relação perigosa com uma
sedutora sociedade geral, que pasteuriza tudo que toca oferecendo os mais
diversos penduricalhos da tecnologia que , fora exceções pouco serviram
efetivamente para grupos sociais diversos, que precisaram sempre de terra e de
respeito a sua dignidade e modo de vida.
Podia-se perceber os sentidos de comunidade ali existentes, cargas genéticas específicas se materializavam em rostos, corpos e cabelos, comuns. No palco, os pomeranos, descendentes germânicos tocavam trajados tipicamente, a cultura imitando a genética. Quando olhei pro lado vi velhas índias dançando aos sons quadrados dos filhos da Pomerânia.
Todas as culturas nacionais, europeus, africanos, índios e
nós mestiços brasileiros. A cultura desorgânica e desumana da sociedade da
cidade encontra as comunidades. As párias sociais, os mendigos da Costa Pereira
dançavam e implicavam uns com os outros, fazendo um tipo de comédia pastelão. E
aí, aumentam as interações, índias acompanhando som germânico com suas casacas,
que sim, são instrumentos africanos. E dançavam. Pomerano com pomerano, índio com
índio, mendigo com mendigo, índio com mendigo...
Passa a folia. Vou atrás.
A marcação pesada da percussão trás reminiscências de um
catolicismo popular, quase pagão, catalisado na figura assustadora do palhaço. Passo
na frente do Bimbo, jogo da seleção na TV. Quase parei, mas a seleção-nação não
me cativou, talvez pelo fato de nesse molde, a nação seja homogeneizante,
igualando tanta riqueza de tons! Mas é
possível que na real seja a distância intermediada pelo invento e o business
envolvido nesse esporte que me afastaram.
A nação que estava presente ali no centro de Vitória me parecia mais
real, pois mais próximo, e mais diversa, como são as coisas reais.
Volto a praça, agora eram lusitanos no palco animando os germânicos
que aparentemente sabiam e gostavam de algumas musicas dos primeiros. Um
mendigo dançava todos os estilos na frente do palco numa dança que misturava
uma miscelânea de repertórios corporais, do samba ao kung-fu.
De repente uma roda onde acontecia uma espécie de desafios de
palhaços, cada um lançando seus versos.
Quando a estrela do Mar tocou no palco o grupos de
dançarinos afro ensaiavam acompanhar dançando lá do chão, denunciando as
conexões ocultas de um Brasil colonial, antigo e diverso.