quinta-feira, 11 de agosto de 2011

corrida ancestral


 O negro corre desesperadamente pela avenida, corre pela vida. Viscoso sangue brota de seu fronte, mas segue a trilha. Corrida ancestral, milhões de anos a trotar. Seus perseguidores deleitam-se, é o auge da noitada, nem a boa bebida, nem as belas garotas se comparam ao êxtase tribal desse momento, as drogas aqui são uma questão menor, mas é claro fazem parte do ritual. O rosto dormente, o vento, a velocidade, a presa fácil à alvejar.                                   
Na neoplatina os garotos brancos se divertem à moda antiga, a caça ao negro não é um esporte oficial, mas só falta uma lei para isso. Nas noites dos pampas é comum esse tipo de perseguição, alguns pais acham até melhor, afinal, seus filhos liberam sua agressividade nas “mulas”, poupando um pouco a família. Mas esses garotos não têm uma cota de agressividade que se esgota e se renova, cada ato reafirma uma condição, os que não conseguem ser ilustres, famosos e admirados tem que valer sua condição de herdeiros de outra maneira. Aí que entra a caça aos negros. Com o tempo, podia-se ouvir nos Lions locais, “Julinho saiu ao pai, está um tremendo caçador, não é rápido demais, nem passa do ponto no trato com as mulas”, ou ainda, “Célia, meu filho tá seguindo o mau exemplo de Castrinho, tortura aquelas pobres mulas por horas e volta todo sujo pra casa.”
Geraldo tinha conseguido finalmente sair duma fazenda de reabilitação do governo, demonstrou “habilidade cognitiva razoável” segundo o relatório dos médicos. Tinha acabado de chegar a Porto Alegre, encaminhado pelo governo, ganharia uns trocados como gari e poderia gastar o pouco excedente com o que achasse melhor. Estava quase no topo onde um negro poderia estar por ali, só seria melhor se fosse aceito por partido político, condição dada à poucos. Recebeu seu adiantamento e foi tomar uma cerveja, há muito sonhava com esse dia. Quando ia em direção a um abrigo temporário para negros, lá pelas tantas, ouviu os gritos de “ô bebum”, “tu não tem vergonha não?”, “é isso que dá trazer esses pretos pra cá”. O que já era turvo na trôpega visão de Geraldo virou um borrão...ouviu um estrondo e sentiu muito calor nas costas, quando entendeu o que estava acontecendo, correu como na fazenda fazia,  só que aqui era pior ainda, não havia nem a terra como aliada.

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